domingo, 5 de dezembro de 2010

Transformação Social no Século XXI

Restrições e Possibilidades (versão 09/04/02)


O contexto para a realização do potencial humano de criar, distribuir riquezas e ser feliz depende, em primeiro lugar, de como os indivíduos se alinham com as visões de mundo que orientam a organização da sociedade. Essas visões de mundo, embora defendam fins semelhantes, acreditam em meios diferentes de alcançá-los, criando ou limitando oportunidades individuais e coletivas. Neste texto será mostrado que, quando se confrontam os tipos extremos dessas visões a partir de um ponto de vista neutro, fica evidente que nenhuma delas tem respaldo suficiente para se impor à outra. Evidencia-se a necessidade de uma síntese que inclua as verdades fundamentais existentes em cada uma delas. Porém, na ausência de uma concepção teórica bem estruturada dessa nova visão, impõe-se a sua construção pela busca de soluções para problemas locais de interesse comum, a partir das condições vigentes. O caminho será construído no ato da caminhada, a partir de prioridades e valores compartilhados.


Visões de Mundo Contraditórias

Usando a classificação de Popper , poderíamos pensar em sociedades abertas ou fechadas. Prevalece, no primeiro caso, a livre empresa sob condições de igualdade de oportunidades e, no segundo, a tentativa de controle total da sociedade por meio do planejamento centralizado. A transformação social ocorreria, no primeiro caso, a partir de inúmeros experimentos descentralizados de melhorias sociais enquanto, no segundo, essa transformação deveria ocorrer pela completa reestruturação do sistema social, a partir de um experimento único e total. Numa linha aparentemente semelhante, porém com sutilezas que a torna bastante diferenciada, favorecendo um individualismo exacerbado, Hayek afirmou que o verdadeiro dilema está entre lutar pela liberdade do indivíduo ou sucumbir à servidão do coletivismo. Nas suas formas extremas, tanto a sociedade fechada quanto a sociedade aberta evoluem para a barbárie, redundando quer no capitalismo selvagem, quer no totalitarismo selvagem.

Popper e Hayek são dois dos mais expressivos intelectuais que tomaram o partido do liberalismo, do indivíduo e do capitalismo a partir do antagonismo gerado pelas posições de Adam Smith e Karl Marx. Smith e Marx são defensores clássicos de visões de mundo contrárias que, até o momento, falharam em suas promessas de construir um mundo em que prosperidade e justiça pudessem conviver lado a lado. Se a visão liberal de Smith levou ao capitalismo selvagem, gerando as monstruosidades apontadas por Marx, a visão coletivista de Marx produziu monstruosidades como o stalinismo. Para alguns analistas, o nazismo teria sido a prova de que, nos extremos, esquerda e direita têm em comum o autoritarismo arrogante e arbitrário.

Julgados a partir de suas declarações de valores, nem Smith nem Marx desejavam os efeitos negativos que decorreram da aplicação dos sistemas sociais que preconizaram. Ambos podem ser considerados como homens de alto nível moral que, sem conhecimento suficiente, basearam-se em crenças sobre como o mundo deveria funcionar. Porém, suas crenças, transformadas em dogmas, originaram sistemas iníquos cuja única validade está em apontar o que não se deve fazer no futuro no processo de construção da sociedade justa. Como diz um ditado popular, o capitalismo e o comunismo reais mostraram-se, historicamente, o oposto um do outro: enquanto, no capitalismo, o homem é explorado pelo homem, no comunismo ocorre exatamente o contrário.

O capitalismo selvagem gerou sofrimento insuportável para muitos, embora acenasse com a possibilidade de sucesso sem limites para o indivíduo trabalhador e poupador. O socialismo real distribuiu a escassez, mas não promoveu a prosperidade e a liberdade. A social-democracia, o sistema social que conseguiu compatibilizar igualdade, justiça e prosperidade, tem mostrado sinais de esgotamento. No Brasil, há indícios de que prevaleceu, por muitos anos, um sistema eclético em que a iniciativa privada, bastante limitada, articulou-se com funcionários públicos privilegiados para privatizar lucros e socializar prejuízos. Atualmente, pode-se dizer que os defensores do socialismo perderam uma grande batalha, enquanto os defensores do individualismo não ganharam completamente a guerra. Fala-se numa terceira via que, em última análise, ninguém sabe exatamente do que se trata. Na ausência de melhor conceito, assume-se que a economia está sendo globalizada.

Os países desenvolvidos desejam colocar suas mercadorias em todos os pontos do planeta, sem restrições, embora criem restrições seletivas a que as mercadorias altamente competitivas dos países em desenvolvimento sejam comercializadas livremente em seus territórios. Assume-se que a sobrevivência, no mercado globalizado, será garantida apenas para as organizações gigantescas, flexíveis e ágeis, capazes de se recriarem o tempo todo, alinhando-se com o ambiente imprevisível, ou para organizações pequenas ou médias baseadas em alta tecnologia. Defende-se que os capitais tenham livre curso para entrar e sair dos países de acordo com a sua capacidade de remunerá-los. Nesse ambiente, a competição torna insuportável a vida das pessoas que têm carência quanto a saúde, disciplina, organização e educação de qualidade. A exigência de feroz competição pela sobrevivência choca-se contra a exigência cristã de cooperação para que haja vida abundante para todos.


O Homem Idolatra a sua Obra

Uma das mais contundentes descrições sintéticas do capitalismo foi feita por Campos , expondo as forças e fraquezas que lhes são inerentes:

“(1) O mercado ocupa-se essencialmente dos bens que podem ser objeto de transações entre agentes econômicos, vale dizer, que têm valor de troca; se isso coincide, ou não, com valores de outra ordem, culturais, humanísticos, ou o que seja, depende do que as partes queiram; (2) O mercado tem também certa tendência a dar mais ênfase ao curto prazo, ou, como diríamos em economês, aplica uma taxa de desconto alta ao fator tempo; dessarte, a rentabilidade imediata é freqüentemente preferida à de longo prazo; (3) Além disso, ele é uma arena implacável: a vantagem vai para quem produza mais e melhor a menores custos; o princípio da eficiência predomina sobre os aspectos distributivos – o que muita gente acha alienante e desumano; 4) O mercado é inerentemente sujeito a perturbações cíclicas, ou seja, o processo de volta ao equilíbrio não é tão rápido que torne pouco significativos os fenômenos de recessão, falência e desemprego, que podem acontecer durante o período de ajustamento.” Campos acrescenta: “
Apesar de tudo é o sistema que até hoje melhor conseguiu atender ao tríplice objetivo da liberdade política, eficiência econômica e progresso social.”

Marx, ao assumir o capitalismo como uma etapa necessária à liberação das forças produtivas da sociedade, ressaltou o quanto, em sua época, ele embrutecia o trabalhador e descaracterizava o papel civilizador do trabalho, conforme se pode ver no trecho a seguir, selecionado de sua obra Ideologia Alemã, por Denby : (...) “É verdade que o trabalho produz para os ricos coisas maravilhosas – mas para o trabalhador ele produz privação. Produz palácios – mas, para o trabalhador, choupanas. Produz beleza – mas, para o trabalhador, deformidade. Substitui o trabalho por máquinas – mas joga alguns trabalhadores de volta a um tipo bárbaro de trabalho e transforma os outros em máquinas. Produz inteligência – mas, para o trabalhador, idiotice, cretinismo.” A solução marxista para a organização social, centrada na extinção da propriedade privada, falhou espetacularmente, embora tenha tido um período de grande sucesso inicial. Freud já previra esse insucesso no livro O Futuro de uma Ilusão devido, segundo ele, à adoção de uma teoria errônea sobre a natureza humana.

Fromm assinalou, baseado na análise do mundo na década de 60, incluindo as perspectivas capitalista e socialista da época, que “Os homens são, cada vez mais, autômatos que fazem máquinas que agem como homens e produzem homens que agem como máquinas; a razão se deteriora, enquanto sua inteligência aumenta, criando com isso a perigosa situação de dar aos homens um formidável poderio material, sem a prudência de saber usá-lo. (...). O perigo do passado era tornarem-se os homens escravos. O perigo do futuro é que eles se podem tornar autômatos. É certo que os autômatos não se rebelam, mas, levando em conta a natureza do homem, ele não pode viver como um robô e continuar mentalmente sadio – destruirá o mundo e a si mesmo, porque já não poderá suportar a monotonia de uma vida sem sentido.”

A competição, como uma espécie de religião universal, tem os seus teólogos e pregadores. Eles podem ser ateus, cristãos ingênuos, filósofos, cientistas e professores; esquecem-se de que a cooperação também faz parte da natureza humana, sendo vital à sobrevivência da espécie . Alguns indícios dos princípios fundamentais dessa religião podem ser encontradas nas declarações públicas de altos executivos e consultores às mais prestigiadas revistas de negócios. A revista Exame, de 28/11/01, por exemplo, destaca a mensagem que uma grande multinacional faz questão que seus funcionários guardem no coração: “Toda manhã, na África, quando uma gazela acorda, ela sabe que precisa correr mais rápido que o mais rápido dos leões. Toda manhã, também na África, quando um leão acorda, ele sabe que precisa ser mais veloz do que, pelo menos, a mais lenta das gazelas. Caso contrário, morrerá de fome. Não interessa se você é um leão ou uma gazela. Quando o sol nascer, é melhor que você esteja correndo.”

Outras declarações comuns, que podem ser encontradas em números anteriores da mesma revista são: “Somente os neuróticos sobreviverão”; “Se encontrarem um concorrente morrendo afogado, enfiem-lhe uma mangueira com água sob pressão garganta abaixo”; “Neste processo existirão mortos, feridos e dissidentes. Devemos enterrar os mortos, cuidar dos feridos e metralhar os dissidentes”; “Acredito que a competição é o valor máximo da sociedade. Tento influenciar os líderes do mundo para que a adotem”, disse um dos mais reconhecidos especialistas mundiais no assunto. “Qual é o leitmotiv do capitalismo? A ganância.”, perguntou e respondeu Lester Thurow, respeitado economista americano.

Os números a seguir podem deixar os pessimistas completamente céticos quanto à possibilidade de se atingir prosperidade compartilhada em âmbito global. Eis alguns dados compilados pelo Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social :

“A diferença entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres do planeta era de 11 vezes em 1913, passou para 30 vezes em 1960, para 60 vezes em 1990 e para 74 vezes em 1997. Vinte por cento da população mundial detém 86% da renda. Essas mesmas pessoas concentram 74% das linhas telefônicas e 93% da utilização da Internet.” (...) “A ONU estima que a aplicação anual de apenas 0,6% do PIB mundial seriam suficientes para que toda a população pobre do planeta tivesse acesso à educação, saúde, alimentação e planejamento familiar. “ (...) “O World Watch Institute, de Washington, calcula que o custo total de um programa de seis anos para proteção do solo, reflorestamento, redução do crescimento populacional, renegociação das dívidas dos países emergentes, aumento da eficiência energética e desenvolvimento de fontes renováveis de energia totalizaria 750 bilhões de dólares. Essa é a quantia que o mundo investe, por ano, em armamentos.”

Um relatório da World Vision, avaliando o Estado do Mundo no ano 2000, citando como fonte Barret Johnson, Our Globe, destaca os seguintes valores, em bilhões de dólares, envolvidos em atividades de natureza destrutiva: crime financeiro (2), gastos militares (950), fraude(800), crime organizado(600), tráfico de drogas(150), pornografia(20), jogos de azar(700), sonegação de impostos(180), furtos em lojas(90), crime computadorizado(44). Total: US$ 3,536 trilhões de dólares. O relatório afirma, ainda, que o Banco Mundial apontou um estoque de poupança global de US$13,7 trilhões de dólares disponíveis para serem investidos em mercados que tragam retornos atraentes, típicos dos países em desenvolvimento. Ou seja, embora países como o Brasil, China e Índia sejam atrativos para esses capitais, o investimento é tão concentrado quanto a riqueza.

Os fatos e os dados anteriores mostram que a insanidade liga o passado ao presente. A inteligência, ainda que tenha sido usada em larga escala na transformação da natureza, não tem caminhado junto com a sabedoria. A tecnologia que poderia libertar, e tem libertado a humanidade, tem sido usada, também, para escravizá-la. Quanto mais velozes se tornam as máquinas, mais o homem é convocado a correr para alimentá-las. A competição pela mera sobrevivência transforma muitos trabalhadores em elásticos esticados além dos seus limites de resistência. Por outro lado, alguns trabalhadores que se queixavam da exploração capitalista, hoje se sentem abandonados, invejando aqueles que têm a sorte de serem explorados. O capitalismo humanista dos japoneses parece estar perdendo terreno para capitalismo turbinado americano, transformado em religião universal e obrigatória para todos. O socialismo real, por outro lado, não é elemento de comparação pois, simplesmente, desmantelou-se.

Soros , um especulador bem-sucedido do mercado financeiro, afirma que a ascensão hegemônica da globalização amplificou o potencial de destruição social e ainda erodiu os conceitos morais, transformando tudo a sua volta em mercadoria. Teriam restado apenas os valores monetários, em uma sociedade onde o ser humano passou a ser julgado em função do sucesso obtido a qualquer preço. Ele alerta para o perigo de que, diante dos extremos de uma competição sem regras civilizadas, as pessoas, desorientadas, passem a ansiar por normas rigorosas e a disciplina severa dos sistemas sociais fechados. O alerta de Soros parece hipocrisia, se o considerarmos um beneficiário da injustiça social. Por outro lado, ela representa um alerta para aqueles que acreditam na sobrevivência do mais forte e mais inteligente, além de qualquer senso de compaixão, pois, a longo prazo, como assinalou Nietzsche, o mais apto à sobrevivência pode ser o mais fraco, porém, mais espiritual. Assim, se a razão fosse usada em larga escala, e não apenas a inteligência, a ética humanista prevaleceria sobre a ética biológica.

Quando impera a ética biológica entre os homens, em detrimento da tradição humanista, de origem teísta ou ateísta, desaparece a obrigação de ação sancionada pela moral. Os mais fracos preferem eliminar seus adversários numa “tocaia”, usando a velha espingarda, ou uma simples faca. Os mais fortes e tecnologicamente desenvolvidos fazem suas guerras com armas teleguiadas, evitando grandes perdas de pessoal na luta corporal direta. De uma maneira geral, o povo prefere viver sob sistemas autoritários, mas que lhes dêem alguma segurança. O ataque terrorista ao World Trade Center, no dia 11 de setembro de 2001, mostrou que a situação se complica ainda mais quando motivos políticos, econômicos, religiosos e étnicos se interpenetram de forma irracional.

Os desencontros humanos são profundos. Reunidos em Davos, Suíça, em janeiro de 2001, e em Porto Alegre, Brasil, no mesmo período, os defensores do mercado, no caso de Davos, e os supostos defensores da sociedade, no caso de Porto Alegre, explicitaram suas diferenças. Em Davos defendeu-se a abertura dos mercados para a competição em âmbito global, sob a justificativa de que isso daria mais oportunidade aos países pobres. Em Porto Alegre defendeu-se a globalização total das oportunidades de uma vida digna. A única certeza que ficou para o público é a de que não há solução mágica à vista para os problemas da humanidade e do Brasil.


O Brasil sob Enfoque Pessimista (veja em seguida o enfoque otimista)

Os desafios à transformação social no Brasil não deixam grandes margens de ação para os pessimistas. Apesar de o País estar entre as 10 maiores economias do mundo, são péssimos os números que medem sua qualidade social. Os10 % mais ricos da população retêm 50% da renda nacional, enquanto os 10% mais pobres detêm apenas 1%. Os números que medem a miséria e a pobreza variam entre cerca de 14 milhões, se consideradas apenas as pessoas em condições miseráveis, até cerca de 50 milhões, que incluem as pessoas consideradas pobres. Computados todos os tipos de violência chegou-se ao ano 2000 com o impressionante número de 130 mil vidas ceifadas. A indústria de segurança já representa cerca de 7% do PIB. Desde 1996, a produção de carros blindados foi multiplicada por 10. O País ocupa o humilhante 69 lugar quanto ao IDH – Índice de Desenvolvimento Humano, e o 125 quanto à saúde.

A revista Veja, de 23/01/02, pp. 82-93, traça um vergonhoso quadro da miséria brasileira. Destaca que o Brasil é o mais rico entre os países com maior número de pessoas miseráveis. Se considerarmos os países na mesma faixa de renda do Brasil, entre 3 500 e 6 000 dólares, teríamos os seguintes percentuais de pobreza: Brasil, 34; Costa Rica, 19; México, 15; Chile, 15; Malásia, 7 e Bulgária, 4. Países com taxa de pobreza semelhante à do Brasil, entre 28% e 34%, estão numa faixa de renda per capta, em dólares, muito menor que a nossa: Brasil (3 400); Panamá (2 800), Botsuana (2 400), República Dominicana (1 600), Mauritânia (800), Guiné (700). 45% das pessoas com até 15 anos de idade estão entre os miseráveis, o que compromete seriamente o futuro do País. A distância entre a renda dos 20% mais pobres e a dos 20% mais ricos é de 33 vezes no Brasil, contra 3 vezes na Polônia, 4 vezes no Japão, 8 vezes nos Estados Unidos, 13 vezes no México e 30 vezes na Guatemala.

O movimento para melhorar a competitividade brasileira na década de 90 trouxe significativos resultados em termos de aumento da produtividade na indústria, evoluindo do índice 100 em 1994, para 143 em 1998, enquanto os salários dos trabalhadores evoluíram do índice 100 para 81,9 no mesmo período. As condições de trabalho deterioraram-se significativamente, com o índice de doenças do trabalho evoluindo de 100 em 1993, para 192,7 em 1997. Enquanto o desemprego aumentou no período 1994 a 1998 em cerca de 50%, cerca de 40% dos trabalhadores empregados fizeram horas extras .

Muitas empresas convidam seus empregados para um envolvimento total com a sobrevivência, mas tão logo eles tornam a empresa mais eficiente são dispensados como desnecessários. Muitas dessas empresas realmente não sobreviveriam se não diminuíssem seus quadros de pessoal, pois tornaram-se displicentes quanto ao uso eficiente de seus recursos. Outras sacrificam empregos forçadas pela bolsa de valores, que as julga permanentemente, na maioria das vezes para garantir as pensões de trabalhadores aposentados. Algumas poucas, diga-se de passagem, sacrificam empregos por mera irresponsabilidade, sobrecarregando os trabalhadores restantes com uma carga de trabalho física e mental insuportável, gerando desespero, doenças e mortes.

As dificuldades não se limitam aos trabalhadores. Cerca de 70% das empresas morrem com menos de cinco anos de idade. Empreendimentos considerados sólidos desabam-se abruptamente diante da competição e das mudanças de rumo da economia. A única certeza atualmente é que, apesar de não haver garantia de sucesso no mercado competitivo, indivíduos e organizações que não se alinham com as necessidades do mercado e da sociedade, e não administram os seus recursos com extremo cuidado e competência, são excluídos com maior rapidez.

Paradoxalmente, os desafios da competição parecem trazer consigo a necessidade de uma nova relação capital-trabalho, mais justa e inteligente, sem a qual todos perderão. A necessidade de forte coesão interna para sobreviver no mercado foi esclarecida num famoso discurso do grande empresário Matsushita - criador, entre outras, da marca Panasonic -, a empresários americanos, ainda na década de 80: “A competição hoje é tão complicada e difícil; a sobrevivência de uma firma corre tantos riscos a todo instante; o ambiente é tão imprevisível, competitivo e arriscado que, para se obter sucesso sustentável é preciso a mobilização da inteligência de cada um dos funcionários da empresa.”

Realce-se o trecho a seguir do discurso do primeiro ministro de Singapura na abertura da 7a Conferência Internacional sobre o Pensamento, realizada entre 1 e 6 de junho de 1997 naquele pequeno, mas altamente competitivo país: “A riqueza de uma nação no Século XXI dependerá da capacidade do seu povo de aprender. Sua imaginação, sua habilidade de buscar novas idéias e tecnologias e de aplicá-las em tudo que fizerem será o recurso-chave para o crescimento econômico. Sua capacidade coletiva de aprender determinará o bem-estar da nação.”

As circunstâncias forçam que se submeta o progresso da ciência aos interesses do progresso social. De fato, a ciência e a tecnologia existentes são mais do que suficientes para melhorar a vida num país como o Brasil. Sabe-se, por exemplo, que entre 20 e 30% do PIB são desperdiçados por displicência, maus hábitos ou incompetência na gestão de recursos; basta, portanto, aplicar o bom senso para melhorar as condições de vida do povo. Temos que decidir viver com dignidade, ainda que pobres, ou perecer por preguiça, incompetência e irresponsabilidade. Ilustremos algumas possibilidades alimentadoras de esperança.


O Brasil sob Enfoque Otimista

As possibilidades individuais de realização, no sistema capitalista, estão ligadas a: energia pessoal, trabalho árduo, poupança, intuição, gosto pelo risco, capacidade empreendedora etc.. Ao citar-se o sucesso de países como Japão, Alemanha, Singapura e Taiwan, quanto à possibilidade de enriquecimento de um povo num curto espaço de tempo, fica a impressão de que, por uma questão cultural, os brasileiros são passivos e inertes diante do mercado. Porém, segundo o relatório Global Entrepreneurship Monitor (GEM), patrocinado pela consultoria Ernst & Young e pelo Instituto Kauffman, o Brasil é o País com o maior índice de empreendedores do mundo, embora o brasileiro seja educado basicamente para ser empregado e seu elevado nível de empreendedorismo se dê em atividades de baixa tecnologia .

O potencial da economia brasileira foi exaltado em documento do influente Conselho de Relações exteriores dos Estados Unidos , atribuindo ao País a condição de quinto maior mercado consumidor do planeta, com alguns números impressionantes: “Primeiro produtor e exportador de suco de laranja, café e açúcar, além de primeiro criador de gado; segundo receptor de investimentos externos produtivos entre os países em desenvolvimento; segundo produtor e exportador de soja e consumidor de jatos executivos e helicópteros, analgésicos, telefones celulares e aparelhos de fax; terceiro consumidor de motocicletas e refrigerantes; quarto fabricante de aviões comerciais e consumidor de geladeiras e freezers; quinto consumidor de CDs de música e quinto produtor de leite; sétimo em número de veículos em circulação e sétimo exportador de calçados; oitavo em número de cartões de crédito e nono produtor de carros. O documento destaca, ainda, que o Brasil é o líder dos países emergentes, e não apenas da América Latina, além de ser o país latino-americano menos ameaçado pelo poder do tráfico de drogas.”

Um número crescente de iniciativas têm sido tomadas no sentido de mobilizar o potencial do povo brasileiro para superar suas dificuldades. O Programa Gaúcho de Qualidade e Produtividade, por exemplo, congrega cerca de 5 mil organizações, envolvendo mais de 900 mil pessoas comprometidas com a busca da qualidade em todas as suas dimensões. A União Brasileira para a Qualidade – UBQ, tem contribuído para transformar as organizações em verdadeiras Universidades, promovendo o desenvolvimento dos trabalhadores em seus locais de trabalho, sem restrições quanto à sua educação formal. Seus encontros são verdadeiros shows onde operadores, gerentes, engenheiros e outros especialistas mostram sua competência na solução dos mais diversos problemas, em ambiente de grande alegria.

Alguns problemas crônicos, quando enfrentados de frente, apresentam soluções simples e baratas, apesar de exigirem coragem quase heróica para enfrentar as barreiras mentais que se interpõem à sua solução. A revista Veja, de 28/3/01, pág. 76, apresenta a impressionante solução encontrada pela Pastoral da Criança para a mortalidade infantil. A Dr. Zilda Arns mostrou que é possível reduzir drasticamente o índice de mortalidade infantil gastando apenas R1,00 por criança/mês, a partir de cuidados elementares com as condições de higiene e nutrição. Entretanto, ela teve de lutar contra as resistências da esquerda e da Igreja para atacar o problema da forma correta. A Dr. Zilda declarou que: “A esquerda criticava por não lutarmos por saneamento. A Igreja, porque pesávamos as crianças em vez de evangelizar.” Quantos problemas dessa natureza estão à espera de alguém com coragem e determinação para fazer o óbvio. Infelizmente, fazer o óbvio pode ser muito difícil, pois, muitos especialistas e intelectuais em postos-chave buscam o rigor técnico em temas sem relevância social, e se julgam importantes demais para se envolverem com os problemas reais cuja solução exige apenas determinação e bom senso.

Recentemente, pesquisando algumas empresas envolvidas com a Cultura 5S, percebi que algumas delas usaram o conceito para desenvolver uma gestão participativa e socialmente responsável. A Mineração Rio do Norte, por exemplo, mobilizou uma cidade de 5200 habitantes, no interior da floresta amazônica, para a obtenção do certificado IS0 14001, além de ter criado oportunidades educacionais para 100% das pessoas em condições de estudar. Ao mobilizar as pessoas para a realização dos seus potenciais em condições dignas a empresa ganhou, como recompensa, uma redução geral dos seus custos, ao longo de dez anos, de cerca de 50%. A Construtora Andrade Gutierrez aplicou o 5S em mais de cem obras, no Brasil e no exterior, integrando qualidade, saúde pessoal e ambiental e produtividade. A empresa treinou mais de 25 mil pessoas com a filosofia de ajudar a construir melhores cidadãos, independentemente de eles continuarem ou não na empresa. Existem dezenas de outros casos de sucesso, mostrando que basta mobilizar as pessoas, com bom senso, para se criar as bases para uma existência respeitável.

Enfim, milhares de pequenas histórias de mobilizações transformadoras mostram que há um excelente clima para a construção de uma sociedade próspera e justa no Brasil, atenuando as estatísticas que alimentam o pessimismo. Cerca de 20 milhões de voluntários já estão colocando suas forças mentais e corporais na causa da transformação social. O Brasil já está sendo transformado, mas é preciso acelerar o processo.


Considerações Finais

O capitalismo, definido como intrinsecamente incompatível com a realização humana plena, não impõe soluções desumanas, apenas permite. Suas regras podem ser humanizadas pela sociedade esclarecida, por meio do voto e da participação efetiva das pessoas, embora essas regras internas tenham limites impostos pela competição no plano global. Os países capitalistas mais desenvolvidos apresentam os mais altos índices de desenvolvimento humano. Os críticos do sistema afirmam que as suas vantagens para os países ricos são a contra-partida das desvantagens dos países pobres e em desenvolvimento, não havendo margens para a construção de sociedades realmente justas em larga escala.

O socialismo real, por outro lado, não cumpriu as suas promessas. A social-democracia trouxe os maiores benefícios, mas está sendo reformulada. O humanismo esclarecido, teísta ou não, tem um núcleo de intenções que, se colocadas em prática, traria justiça, prosperidade e paz. Todas as grandes filosofias e religiões têm um núcleo comum de bom senso passível de ser evocado e aplicado com apoio universal. O ecumenismo social é possível e necessário, ainda que persistam diferenças nas visões de mundo de cada grupo humano organizado.

Há inúmeras evidências de que é muito simples fazer mudanças positivas no Brasil, embora não seja fácil. Percebe-se uma grande ânsia por justiça e bem estar, mas nem todos têm a iniciativa de fazer o que está ao seu alcance. A imprensa tem mostrado que muitos dos postos-chave, no executivo, no legislativo e no judiciário, foram ocupados por pessoas que se aplicaram a usufruir dos recursos públicos, criando, inclusive, a ridícula figura jurídica do direito adquirido, ainda que mal. Muitos políticos mantêm-se no poder pela distribuição de migalhas ao povo carente. Mas essas são as condições reais, e não há como esperar que elas mudem para se começar a agir.

Se alguns acreditam que “o homem é o lobo do homem”, outros acreditam que “o homem esclarecido é deus para o homem ignorante”. Sob o olhar impassível da história, o homem é o problema mas é, também, a solução, de acordo com a fonte do poder que julgue conduzi-lo para alcançar a finalidade última de sua existência. O comportamento moralmente elevado, por si mesmo, orienta os verdadeiros filósofos e cientistas; Deus é a fonte de poder dos cristãos que, pelo menos em termos nominais, constituem a maioria do povo brasileiro. Filósofos, cientistas, cristãos e ateus, por sua vez, estão sendo impelidos a agir como cidadãos unidos pelo interesse comum de preservar a sociedade. Já que o ecumenismo religioso não parece ter futuro no mundo atual, pode-se explorar as possibilidades de um ecumenismo social.

Já sabemos tudo de que precisamos para acelerar a transformação social brasileira. Urge acelerar os movimentos de transformação em curso, porém, seguindo a ordem natural das coisas. Que cada pessoa, onde estiver, individualmente ou equipe, atue para construir um ambiente de qualidade em torno de si, em termos físicos e sociais, respeitando as leis naturais. Quando essas leis não forem conhecidas, que a ação leve em consideração aqueles princípios universais legados pela filosofia e pelas religiões históricas: “fazer sempre aquilo que possa ser tomado como regra universal”, agir com “fé, esperança e amor” ou, numa linguagem secular, agir com “confiança, visão de futuro e solidariedade”.

Que cada brasileiro inicie a construção do País que deseja legar aos seus descendentes a partir do local onde estiver. Que faça faxinas, organize o ambiente em torno de si, torne tudo mais transparente e visível, cuide da própria saúde e da saúde ambiental, conserve os recursos materiais e que, sobretudo, aprenda a aprender. Que a educação seja redirecionada para a transformação social, desenvolvendo pessoas competentes, íntegras e solidárias. Sabemos que uma viagem de milhares de quilômetros começa sempre pelo primeiro passo. É assim que mudaremos o Brasil e daremos um bom exemplo para a humanidade!


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
POPPER, K Raimund. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. Ed. Itatiaia/Ed da USP, 1987.
HAYEK, F. A . O Caminho da Servidão. Expressão e Cultura: Instituto Liberal, 1987.
CAMPOS, Roberto. Antologia do Bom Senso. Topbooks, 1996.
DENBY, David. Grandes Livros. Record, 1998.
FROMM, Erich. O Dogma de Cristo. Zahar Editores, 1978.
OGBURN, William F. & NIMKOFF, Meyer F. Cooperação, competição e conflito. In: CARDOSO, Fernando H. & IANNI, Octávio. Homem e Sociedade. Companhia Editora Nacional, 1973, pp 236-61.
G GRAJEW, Oded. Por Um Mundo Mais Seguro: a crise mundial coloca em evidência a responsabilidade social das empresas na busca e na construção de uma sociedade mais justa. Guia da Boa Cidadania Corporativa, 2001, pp. 20-21. (Parte integrante da edição 754 da revista Exame, de 28/11/01)
SOROS, George. A Crise do Capitalismo. Campus, 1988.
FONTES DIVERSAS: Fundação Seade/DIEESE, IBGE, FGV, Anuário Estatístico da Previdência Social e Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada.
Revista EXAME, Ano 35, No. 4, 21/02/01, pág. 18.
Revista VEJA, Ano 34, No. 7, 21/02/01, pág. 44.

Nenhum comentário:

Postar um comentário